sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A ESPIRITUALIDADE DO DESERTO

Por Zélia Vianna
E-mail: zelia.vianna@yahoo.com.br

Uma das figuras centrais do tempo do Advento e do Natal é João Batista. Filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, parenta próxima de Maria Santíssima, João nasceu em Aim Karim, um povoado seis quilômetros distante de Jerusalém. Apesar de ter o seu nascimento anunciado por profetas do Antigo Testamento e dos acontecimentos sobrenaturais que cercaram seu nascimento, sua importância maior reside no fato de ter sido o precursor de Cristo, isto é, de ter preparado o povo para a chegada do Messias, pregando, batizando e conclamando o povo a fazer penitência e mudar de vida.


O batismo era uma prática comum a muitos povos daquele tempo e conhecido na Palestina por algumas seitas judaicas que o praticavam como sinal de purificação e admissão ao grupo. O batismo de João não conferia a remissão dos pecados, vez que o perdão dos pecados pertencia à nova aliança que o Messias traria. Além de aberto aos pagãos, a grande novidade do batismo de João era a motivação: sinal exterior de arrependimento dos pecados, de conversão e mudança de vida. Pregando e batizando, João Batista convidava insistentemente o povo a se preparar para a vinda do Messias, ansiosamente aguardado por todo Israel, através de uma vida de penitência.

João, o último profeta da Antiga e o primeiro da Nova Aliança, foi chamado de "A voz que clama no deserto". À primeira vista, a palavra deserto aponta para uma situação de solidão, aridez, dificuldades, e até de selvageria. Mas pode também ter outro significado. Segundo os estudiosos, na língua hebraica as palavras deserto (midbar) e falar (dabhar) têm a mesma raiz, o que nos leva a entender o deserto de João como o lugar onde Deus nos fala e nós o escutamos.

Vivendo numa situação de desânimo e desesperança, o povo, impressionado com os hábitos humildes e o viver despojado de João, acorreu ao deserto para escutá-lo e ouvir seus conselhos. Homem de profunda oração, pregador rude, de linguagem dura e viver austero, João não tinha "papas na língua". Ao tempo em que conclamava o povo à conversão, denunciava pública e abertamente os desmandos políticos, sociais e religiosos de seu tempo. Mas como falar e viver a verdade incomoda, João desagradou principalmente a Corte do Rei Herodes, mergulhada num mar de devassidão, corrupção e injustiça e, de modo particular, o próprio Rei e sua esposa Herodíades, com quem vivia ilicitamente.

Foi durante um banquete no qual se celebrava a vida de Herodes, que foi decidida a morte do profeta. João Batista morreu degolado a mando do Rei, a pedido da filha de Herodíades que, instigada pela mãe, pediu num prato a cabeça do filho de Zacarias e Isabel. O preço da vida de João foi uma dança magistralmente executada por Salomé, filha de Herodíades.

A figura de João aponta o Tem,po do Advento como época propícia, não para se ir necessariamente ao deserto do Saara ou do Atacama, mas para se buscar uma experiência de encontro a sós com o Deus que, apesar de nossas traições, nos quer tocar, nos quer falar, nos quer atrair para um encontro de amor: "Agora, sou eu que vou seduzi-la, vou levá-la ao deserto e conquistar seu coração" (Os 2, 16).

Tempo de Advento é tempo de enfrentar a solidão do deserto, porque se por um lado o deserto é o lugar dos problemas, do desânimo, do cansaço e das crises, são exatamente essas situações que vão revelar o nosso caráter, que vão nos mostrar quem realmente somos. Precisamos ir ao deserto porque embora custe e doa, só quando tomarmos consciência da nossa pequenez e impotência diante da fome e da sede, da presença dos lobos e serpentes que nos ameaçam, só quando sentirmos na alma a dor pelo reconhecimento do nosso pecado, vamos perceber claramente que sem Deus somos nada e que dele dependemos mais do que o ar que respiramos. O deserto é o lugar da dor porque do reconhecimento do nosso pecado, mas é, sobretudo, o lugar do encontro com Deus, o lugar da experiência do perdão e da salvação de Deus.

Como Moisés, que ousou de trocar o fausto e o burburinho da corte egípcia pela solidão, como Moisés, que entendeu que tirar as sandálias que lhe davam proteção e segurança no caminhar, era condição para aproximar-se da sarça ardente, também cada um de nós é convidado, neste Advento, a buscar a solidão do deserto, a despojar-se de suas pseudoseguranças para ir ao encontro do Deus que ansioso nos aguarda para nos "devolver as videiras e transformar nosso Vale de Desgraça em Porta da Esperança". Como João, que não se acovardou ante a leviandade de uma Corte e o poder mléfico de um rei, nós também possamos, num mundo onde é cada vez maior o número de corações desérticos, apontar o único capaz de saciar a sede do mundo: Emanuel, o Deus Conosco, o Menino que nos chega no Natal.

Um comentário:

PARA REFLETIR...

Salmo 4

Quando te invoco, responde-me, ó Deus, meu defensor!
Na angústia tu me aliviaste: tem piedade de mim, ouve a minha prece!
Ó homens, até quando vocês ultrajarão minha honra, amando o nada e buscando a ilusão?
Saibam que Javé fez maravilhas por seu fiel: Javé ouve quando eu o invoco.
Tremam e não pequem. Reflitam no silêncio do leito.
Ofereçam sacrifícios justos e tenham confiança em Javé.
Muitos dizem: "Quem nos fará ver a felicidade?"
Javé, levanta sobre nós a tua face!
Puseste em meu coração mais alegria do que quando transbordam o trigo e o vinho deles.
Em paz me deito e logo adormeço, porque só tu, Javé, me fazes viver tranquilo.